Depois de quase três meses do primeiro Café 22, o comitê organizador da Semana da Arte Transmoderna realizou uma segunda edição do webinar, desta vez com o tema “Brasil, entidade antropofágica!”. Para assistir à transmissão gravada do evento, que ocorreu na tarde do sábado (14/08), basta acessar o link.

O segundo “Café 22 – Do moderno ao transmoderno” teve a mediação do cineasta Eduardo Ricci e a participação da atriz Priscila Ribeiro e do psicólogo Breno Ayres. Além disso, toda a musicalidade das cantoras Alice Mesquita e Márcia Okida também esteve presente no webinar.

Esta ação cultural foi realizada pela comissão organizadora da Semana de Arte Transmoderna de 22, da Baixada Santista, e das celebrações do centenário da Semana de Arte Moderna de 1922, integrada por representantes do Fórum da Cidadania, Unisanta, Colégio e Sistema de Comunicação Santa Cecília, Museu do Café, Sesc Santos, Seduc Santos, Jornada do Patrimônio Histórico, entre outras instituições.

O Café 22

Por volta das 16h, o jornalista e cineasta Eduardo Ricci iniciou o aguardado webinar comentando os objetivos do evento e explicando ao público o conceito de “antropofagia” em seu sentido cultural (literalmente, se refere ao ato de comer ou devorar a carne de outra pessoa) e como esta ideia se insere crucialmente no Modernismo brasileiro. “A antropofagia é, para muitos historiadores, a expressão máxima do Modernismo, e nada mais é do que uma metáfora sobre ‘comer o outro que nos habita e quem também habitamos’”, explicou o representante da Unisanta.

Após a rápida explicação, Eduardo Ricci chamou a cantora Alice Mesquita para fazer uma declamação cantada da música “Alegria, Alegria”, de Caetano Veloso. Depois dessa abertura artística, foram chamados para o debate a atriz Priscila Ribeiro e o psicólogo Breno Ayres.

Priscila iniciou sua fala destacando a importância que ainda existe em se trazer à tona o conceito de antropofagia. Ela exemplificou essa ideia citando um espetáculo do qual faz parte: “Cinderela Brasileira”, escrito e dirigido por Kadu Veríssimo. “É uma peça que trata de uma história que há tanto tempo é contada para crianças, mas que nós contamos de outra maneira, com outras referências, transformando em algo próximo a nós (brasileiros)”, comentou a atriz.

Aproveitando o tema, Eduardo Ricci questionou Priscila Ribeiro sobre seu processo criativo, como atriz, na criação de personagens. Ela respondeu à pergunta tomando como exemplo outro célebre espetáculo do qual faz parte, “Zona!”, que retrata a hipocrisia de uma sociedade decadente e que está intimamente ligada à zona portuária santista. “Foi um processo doloroso, pois havia várias histórias difíceis, mas ao mesmo tempo foi muito bom”, destacou Priscila, sobre as vivências necessárias para a construção de sua personagem.

O psicólogo, músico e docente da Unisanta Breno Ayres também iniciou sua fala exaltando os ganhos intelectuais obtidos com o sistema de pensamento antropofágico. Ele também destacou a necessidade de se cederem espaços a artistas inseridos em realidades marginalizadas em relação aos grandes centros de produção artística tradicionalmente mais visados. Para exemplificar tal ideia, Breno compartilhou a imagem do quadro “Re – Antropofagia”, do artista indígena amazônico Denilson Baniwa.

Denilson Baniwa. Re-antropofagia, 2018.

“Esse artista traz um pouco a crítica de que não foi, de fato, aquele movimento (Modernismo) que descobriu o ‘Brasil profundo’, mas já havia outros artistas produzindo”, ressaltou o psicólogo, que também falou brevemente sobre o conceito de apropriação cultural em um país como o Brasil.

Depois de Breno Ayres terminar sua fala, Eduardo Ricci apresentou um breve painel sobre Economia da Cultura que, segundo ele: “está relacionado com todo esse processo antropofágico”.

“A economia pode ser vista por nós, que produzimos cultura, como a ciência da tomada de decisão. […] E por mais que muitas gestões públicas se utilizem da Economia Criativa, às vezes se esquece de lidar melhor com o artista e criar uma política cultural para esse ir e vir da arte”, destacou o mediador e cineasta, que também comentou o papel importante que Mário de Andrade exerceu no setor.

Após a apresentação do painel, Eduardo Ricci iniciou uma roda de debate com Breno Ayres e Priscila Ribeiro. O primeiro tema abordado foi a resistência e o nascimento quase “milagroso” da alegria em contextos de total hostilidade e opressão. Sobre isso, Ayres trouxe as rodas de samba e rodas de viola caipira à tona, como exemplos. “A arte tem essa potência de ser um grito de sobrevivência e resistência”, comentou.

Priscila acrescentou ao tema suas experiências e noções sendo uma mulher negra no Brasil atual. Segundo ela: “Estamos falando de um país racializado que tem todas as suas relações de vida, econômicas e culturais atravessadas pela raça, pela etnia. […] Não é uma questão de remorso, precisamos encarar quem somos. Então, um corpo negro feminino é um corpo despojado no pensamento geral e ligado a não subjetividade. São pessoas que não têm direito a sentir dor, fraqueza e medo”.

A atriz ainda continuou seu raciocínio: “Eu percebo que eu não sei chorar. E por que é difícil para mim essa noção de poder ter lágrimas? Porque faço parte de duas gerações seguintes a de pessoas que eram vendidas, que pariam e seus filhos eram vendidos, que se relacionavam com alguém e essa pessoa era vendida ou morta. Como podem se desenvolver sentimentos diante desse tipo de relação? Então, ser uma mulher negra no Brasil de hoje com todas as lutas que conseguimos alçar é isso. […] Por isso a arte é importante, pois é um lugar de suspensão”.

Após a fala da atriz, Eduardo Ricci atentou sobre o tempo e abriu espaço aos participantes para as declarações finais. Priscila Ribeiro agradeceu o convite e expressou um desejo por tempos melhores no Brasil. “Vivemos tempos difíceis, sendo que para povos indígenas e para a população negra esses tempos vêm de muito longa data. Essa guerra e esse apagamento cultural são centenários, mas não é por isso que queremos que essa situação continue. […] Nós que estamos aqui, que não sucumbimos com a COVID-19 como tantos outros, temos a missão de continuar tentando transformar este país”.

Breno Ayres comparou, em sua declaração final, a sua participação no Café 22 à presença de pessoas brancas, tidas como desvalidas, em alguns quilombos brasileiros. “(O quilombo) era um lugar majoritariamente negro, mas que também tinha essas misturas, de quem queria se jogar nesses encontros das diferenças, reconhecendo os erros e realizando reparos das suas ancestralidades. Então, vamos tentando aprender sobre a vida, para mudar um pouco essa realidade. […] Essa é uma boa imagem de como me senti aqui hoje”, destacou o psicólogo.

Depois dos discursos finais, Eduardo Ricci chamou a designer e cantora Márcia Okida, que primeiramente agradeceu o convite, destacou sua amizade de longa data com o cineasta e explicou sua escolha de repertório. Ela optou pela canção “Sangue Latino”, do grupo Secos e Molhados, que dialoga com as dolorosas e precoces perdas provocadas pela pandemia.

“É uma música que tem trechos que me dizem muito, por exemplo: ‘E o que me importa é não estar vencido’. Falamos de pessoas que não foram vencidas por nada, nem mesmo pela morte. ‘Um grito, um desabafo’, são pessoas que sempre desabafaram pela arte, através do teatro, da música, da sala de aula.”, destacou Márcia.

Antes de rolar a música, Eduardo Ricci fez suas declarações finais: “Dedicamos o Café 22 ao Célio Nori e a outros grandes nomes. Em memória a todos eles que partiram por conta dessa doença terrível que nos assola, vamos assistir a Márcia Okida para poder pensar na vida e seguir em frente”, concluiu o cineasta.