Em 12 de dezembro, já terão passados 40 anos desde sua partida. Não por acaso, foi em Santos, terra onde adorava viver e teve destacada atuação cultural na década de 50, que ela morreu. Patrícia Galvão, ou Pagu, viveu literalmente cercada pelas palavras. Em sua trajetória de vida e obra (1910-1962), das palavras valeu-se como jornalista, crítica de letras, artes, televisão e teatro, poeta-desenhista, romancista, política militante, dissidente política, incentivadora cultural, mulher precursora e revolucionária.
As palavras estiveram presentes em suas colunas de jornal, de 1929 a 1962, para divulgar os grandes renovadores da linguagem. Autores desconhecidos no Brasil e alguns até no restante do mundo ganharam vida e espaço.
Em Santos, incentivou o teatro amador, fez campanha para a construção do Teatro Municipal (instalado hoje no Centro de Cultura que leva seu nome), traduziu e dirigiu teatro de vanguarda; fundou a Associação dos Jornalistas Profissionais e a União do Teatro Amador, que revelou tantos artistas depois consagrados em teatro e televisão.
Participou ativamente de movimentos políticos e culturais importantes que afetaram nosso País e o restante do mundo, a partir do Modernismo e da utopia que o caracterizou.
Antecipou-se e fugiu do maniqueísmo político da época. Denunciou tanto o autoritarismo da direita como o da esquerda.
Em seus 52 anos de vida e buscas, não lhe faltou visão, ou seja, a arte de ver coisas invisíveis.
Para homenagear alguém avesso a homenagens, formalismos e academicismos, podemos dizer hoje a ela que se pode enterrar a liberdade, mas não se pode matá-la. Você, Patrícia, lutou pela liberdade, foi presa e sofreu por ela. Mas vida e morte são temporárias. A liberdade é eterna.
Devido ao seu jeito de agir, vestir e viver, muitos a chamaram de estranha. Mas, quando somos um pouco estranhos, podemos fazer coisas impensáveis e até inadmissíveis por aqueles presos às convenções. Pois viver é a coisa mais rara do mundo. Como disse Oscar Wilde, a maioria das pessoas apenas existe.
Você ultrapassou o métron , para os antigos gregos, a justa medida de cada um. O métron é medida subjetiva que vem dos primórdios do pensamento ocidental. Ultrapassá-lo significa arriscar além da conta.
Foram tantos os riscos, muitos os tropeços. Você pode ter perdido muitas coisas. Mas, às vezes, quando se perde, na verdade, estamos ganhando.
Por tudo isso, Pagu, não podemos dizer que, desde 1962, passaram-se 40 anos sem sua presença, pois nos ficou sua alma. Como diria Rubem Braga, no fundo, talvez não seja bom negócio vender a alma. A alma sempre nos faz falta.
A sua torna-se imprescindível hoje, quando a tecnologia cria pontes tão compridas que não se sabe onde vão dar. O saber de muitos diminui, torna-se específico. Não temos ainda instrumentos que resolvam o conflito entre carência e desperdício. Muitos possuem muitas coisas que outros não têm, não terão e isso não os irmana, antes os separa.
Mas, a esperança existe. As perguntas essenciais continuam sendo feitas pelas crianças. Cresce o número de jovens e pessoas voluntárias ou preocupadas em corrigir desigualdades e distribuir amor. O Brasil é hoje muito mais convicto dos valores democráticos do que há tempos atrás.
Ainda podemos curar qualquer mal na água salgada, seja ela suor, lágrimas ou um mergulho no mar. No mar da escandinava Dinesen, ou no mar santista, de Pagu e de todos nós.
Sua história, Pagu, interessa ainda a muitos que não a conheceram mas se identificam com seus ideais. Você e suas idéias têm sido alvo de livros, palestras, exposições, documentários estimulando a pesquisa, a criação, o debate e a reflexão críticas. Está sendo lançado pela UNISANTA, A Tribuna, FESTA e Oficina Cultural Pagu o Prêmio Cultural que leva o seu nome, de incentivo e fomento à produção literária e artística – conto, desenho, poesia, crônica, artigo, roteiro teatral. A sua União do Teatro Amador continua existindo, com o nome de Federação, e produzindo artistas.
Você talvez nos surpreenda, respondendo que hoje sua melhor homenagem seria a vaia. Vaia que, no dizer de Nelson Rodrigues, é a verdadeira apoteose, pois os admiradores corrompem.
Ou as vaias que salvaram a Semana de Arte Moderna, em 22, e deram-lhe o ar de juvenil travessura responsável por seu eterno encanto. Vaias, segundo a lenda, encomendadas por Oswald de Andrade que, com esse golpe de gênio, fez a Semana durar até nossos dias.
Mas você nos deu sua alma, e nós, santistas, lhe entregamos hoje, ao invés da vaia apoteótica, o nosso coração.
Não se ganham corações de presente. Corações, só os recebemos por merecimento.

* Lúcia Maria Teixeira Furlani é escritora, autora,
entre outros, de Pagu (livro e documentário),
doutora em Psicologia da Educação e Diretora-Presidente
do ISESC, que mantém a UNISANTA.