Pescada goete Cynoscion jamaicensis

por Matheus M. Rotundo*

Com a proximidade da Páscoa, grande parte dos brasileiros começa a pensar sobre a refeição típica da data. Embora o conhecimento sobre a Páscoa seja passado de geração a geração, a importância dos peixes ainda é negligenciada, seja em relação aos benefícios em seu consumo ou em relação à sua conservação.

Simbolicamente, os peixes retratam a prosperidade e a riqueza. Antes considerados um recurso inesgotável, hoje são classificados como um recurso natural renovável, ou seja, se gerenciado adequadamente, não será esgotado. Embora diversos estudos demonstrem o decréscimo do estoque pesqueiro de diferentes espécies, ainda temos tempo de recuperar os danos causados e melhorar nossa qualidade de vida.

Nossa visão sobre os peixes ainda é inadequada. Poucas pessoas conseguem relacionar os peixes aos seres humanos ou mesmo sua importância para a sociedade. Considerando o ponto de vista evolutivo, todos nós somos descendentes dos peixes, afinal são os primeiros organismos vertebrados a habitar nosso planeta. A presença dos peixes na Terra supera centenas de milhões de anos, tempo muito maior quando comparado a nossa existência. Ao longo do desenvolvimento humano, os peixes representaram um papel importante como fonte alimentar. Hoje, além de alimento, são utilizados como fonte primária de substâncias que melhoram a saúde humana ou mesmo mantidos animais de estimação. A importância dos peixes é registrada ao longo da história do homem e sempre gerou fascínio e curiosidade para a sociedade humana.

Basta verificar a grande quantidade de pessoas que visitam aquários por todo o mundo, fazendo com que estes locais sejam um dos atrativos turísticos mais procurados. Neste sentido, também é importante destacar o turismo subaquático, que cada vez mais possibilita a aproximação entre os seres humanos e os peixes no ambiente natural desses animais.

Mesmo com tanto interesse, parte da sociedade ainda possui dúvidas em relação a questões de consumo, benefícios à saúde e sobre a conservação destes fascinantes animais. Embora em muitos locais do mundo o consumo de peixe seja relativamente elevado devido a seus benefícios à saúde humana, outros ainda possuem uma visão restritiva direcionada ao valor econômico. Considerado por muitos como alimento da elite social, os peixes são a principal fonte de proteína em muitos países pobres ou em desenvolvimento. Desta forma, é importante conhecermos toda a cadeia produtiva de um setor com elevada representatividade na econômica mundial. Os peixes são recursos naturais que pertencem aos países, assim o preço pago reflete no trabalho de sua captura e conservação para o consumo, ou seja, pagamos ao pescador o valor de seu esforço em pescar e manter o produto em condições adequadas para a alimentação. Logicamente, dentro deste preço estão incorporados todos os insumos necessários para a captura e conservação do pescado, que se estendem às redes, equipamentos, combustível e manutenção das embarcações, gelo, além dos impostos. Mesmo com todos estes custos, atualmente o pescado ainda é mais barato que a carne bovina e suína, porém muitas reflexões sobre este valor devem ser reavaliadas pelo consumidor:

Peixe sapo Lophius

Aparência e preço não refletem sabor
Por serem os vertebrados mais antigos do planeta, os peixes possuem uma grande diversidade de espécies e consequentemente formas e cores variadas. Várias espécies consideradas “feias” são rejeitadas diariamente mesmo possuindo um sabor muito agradável. Esta relação é totalmente cultural e variável por região, por exemplo, peixes rejeitados no comércio da Região Sudeste brasileira são muito apreciados na Região Nordeste e vice-versa. Um exemplo disso é a espécie de peixe-sapo (Lophius spp), a qual é rejeitada por sua aparência no Brasil, porém é considerada uma iguaria em países europeus como Portugal e Espanha. Cada região possui seus hábitos e costumes alimentares, ou seja, uma cultura regional, porém, quando os peixes são capturados e rejeitados, geram desperdício e impactos ambientais desnecessários, sendo contrário aos objetivos do desenvolvimento sustentável. Mas quais peixes podemos consumir? No geral, quase todos, pois poucas espécies apresentam substâncias nocivas à saúde, como os baiacus, por exemplo.

Outro aspecto mantido pela cultura é a relação do valor econômico com o sabor. Acredita-se que peixes mais caros possuem melhor sabor, porém isso não é uma realidade, pois o preço está relacionado à disponibilidade da espécie na região, além da “lei da oferta e procura”.

Bagre Genidens genidens

Assim como outros animais, existe diferença na abundância das espécies de peixes, logo, como pagamos pelo esforço do pescador em capturar o pescado, as mais abundantes são mais baratas em comparação às mais raras. Além disso, também devemos considerar o tipo de pesca necessário para a captura, pois algumas espécies vivem em ambientes específicos que necessitam de equipamentos especiais de custo mais elevado.

Peixe cabra Prionotus punctatus

Esta relação está mudando graças a conceitos conservacionistas para evitar o desperdício e os impactos ambientais. Uma crescente linha de comércio consciente em relação à sustentabilidade tem apresentado os “Peixes Não Convenvionais” (PENACOs), que geralmente são espécies abundantes (sem restrições de conservação), que

Pirajica Kyphosus vaigiensis

representam uma importante opção econômica e gastronômica. Como cada região apresenta uma cultura típica, várias espécies de peixes considerados como PENACOs em uma região são conhecidas e comercializadas normalmente em outras. Aqui no litoral de São Paulo, alguns PENACOs que vêm ganhando destaque são os peixes cabra ou cabrinha, o peixe espada, o carapau, a caratinga, a corvina, a pirajica e os bagres. Os PENACOs são, além de uma boa experiência gastronômica, uma forma de conservação para espécies ameaçadas.

Outra importante informação está relacionada ao tipo de conservação. Embora o brasileiro tenha o costume de comer peixes frescos, enlatados, defumados ou salgados, os últimos são geralmente importados, existem várias espécies brasileiras que, quando conservadas da mesma forma, possuem melhor sabor. Desta forma, temos peixes para todos os gostos e bolsos, basta pesquisar junto aos pescadores ou chefes de culinária especializados em pescado.

Fraudes no comércio do pescado
Embora muitas pessoas sejam conservadoras em relação ao paladar, poucas sabem que já consumiram a maioria destes peixes considerados PENACOs. Infelizmente, ainda existem muitas fraudes em relação à venda de pescado no Brasil e no mundo, principalmente devido ao desconhecimento da sociedade. Vários estudos realizados no Brasil já demonstraram que os consumidores pagam por uma espécie, mas na realidade estão comendo outra. Isso acontece principalmente quando estas são comercializadas já “limpas”. Por exemplo, na Região Sudeste do Brasil, os peixes mais procurados são a pescada, robalo, garoupa, badejo e linguado, porém em muitos restaurantes ou mesmo nas peixarias, o consumidor não tem a oportunidade de ver o peixe inteiro, o que favorece a fraude.

Pecada foguete macrodon atricauda

As pescadas, por exemplo, são um grupo de espécies (amarela, branca, foguete, inglesa ou banana, cambucu, goete, etc.) que possuem uma diferença muito grande em relação à disponibilidade no ambiente natural, porém raramente o consumidor tem a oportunidade de pagar o valor adequado de cada espécie.

Pescada Branca Cynoscion_leiarchus

Poucos comércios adotam os valores venais com base no preço pago aos pescadores, no geral, o pescado é comercializado por atravessadores e estes nem sempre são justos na hora de revender.

 

Logicamente, devemos considerar que eles possuem custos para o transporte e a conservação do pescado, além dos impostos e gastos com a manutenção do estabelecimento comercial.

Pescada inglesa ou banana Nebris microps

A maior parte da sociedade compra pescado nos centros urbanos e não tem acesso aos pescadores, desta forma, desconhecem o valor do produto comercializado. Este tipo de fraude desfavorece tanto o pescador, como o consumidor, pois os comerciantes compram os peixes inteiros e pagam conforme a espécie, porém revendem como outras espécies e valores.

Outro problema em relação a fraudes é a venda ilegal de peixes ameaçados de extinção. No geral, as espécies ameaçadas são vendidas descaracterizadas, ou seja, sem que seja possível identificar a espécie como forma de burlar a fiscalização. Entre as espécies ameaçadas que mais são comercializadas estão os tubarões (cações), raias, meros e badejos. Esta prática não possibilita a prática do consumo consciente do ponto de vista ecológico, sendo esta uma vertente cada vez maior em vários países, inclusive no Brasil.

Conservação do pescado
Grande parte dos problemas de saúde devido ao consumo do pescado estão relacionados com a conservação após a captura. Geralmente, os pescadores vendem o peixe fresco resfriado ou congelado, assim como alguns comércios em centros urbanos. Nestes, deve-se observar o registro do Serviço de Inspeção Federal (SIF), o qual é responsável por fiscalizar os estabelecimentos de produtos de origem animal. Além disso, deve-se evitar o consumo de pescado quando ocorrem surtos de microrganismos que possam causar dano à saúde ou quando são capturados em áreas conhecidamente poluídas.

A melhor opção para o consumidor está em conhecer o peixe que deseja comprar e sempre realizar a compra observando o exemplar inteiro (quando vendido fresco). Deve-se procurar estabelecimentos que identifiquem o pescado adequadamente e precifiquem conforme a disponibilidade do recurso. Outro aspecto importante está relacionado às características que evidenciam o estado de conservação do pescado, como olhos brilhantes (nunca opacos), brânquias (guelras) bem avermelhadas (nunca pálidas), escamas bem presas ao corpo (nunca soltando ao toque), cores brilhantes (nunca esbranquiçadas) e ausência de feridas similares a feridas de infecções. Deve-se dar preferência aos comércios que mantenham o peixe refrigerado com gelo ou câmara fria e evitar peixes que estão dentro da água refrigerada. O estabelecimento deve ser bem higienizado e os vendedores devem estar trajando vestes e equipamentos adequados para o manuseio do pescado.

Custo-benefício para a saúde
Inegavelmente, o hábito regular de consumir peixes traz grande benefício à saúde humana. A carne dos peixes é rica em aminoácidos essenciais (substâncias não produzidas pelo nosso organismo), são mais proteicos que a carne bovina e suína, apresenta alta digestibilidade, baixa quantidade de gorduras (lipídios), sendo estas predominantemente polinsaturadas (saturada em carnes vermelhas), em que se destaca o Ômega 3, possuem boas concentrações de vitaminas lipossolúveis (como A, E e principalmente D) e hidrossolúveis (niacina e ácido pantotênico), além de vários minerais importantes, como o sódio, potássio, magnésio, cálcio, ferro, fósforo, iodo, flúor, selênio, manganês e cobalto.

Com todos estes compostos, o consumo regular de peixes propicia a diminuição significativa de diversas enfermidades comuns que são responsáveis pela morte de grande parte da população, como doenças cardiovasculares, acidente vascular cerebral (AVC), além de diminuir a pressão arterial, triglicérides e colesterol total e ter ação anti-inflamatória. Evita doenças relacionadas a hipovitaminoses, auxilia nas reações químicas de liberação de energia e no metabolismo de proteínas, carboidratos e gorduras.

Desta forma, vários países inserem os peixes regularmente em seu cardápio cotidiano, visando melhorar a saúde humana a médio e longo prazo, assim como reduzir os custos com tratamentos hospitalares. Em muitos países existem políticas nacionais para o consumo de peixes. No Brasil, várias iniciativas têm inserido os peixes na merenda escolar, visando à saúde e também ao incentivo ao hábito de consumir pescado. Diferentes formas de preparação garantem a segurança alimentar em relação aos “espinhos”. Existem profissionais especializados em produzir produtos manufaturados de peixes como nuggets, steaks, salsichas, etc., com boa aceitação pelas crianças. Assim, buscando uma vida saudável e equilibrada, o consumo de peixe deve ser incentivado, principalmente considerando as boas práticas de um consumo sustentável.

Pescadores e a conservação dos recursos pesqueiros
Embora muitas vezes os pescadores sejam acusados como sendo os principais causadores da diminuição dos estoques pesqueiros, sempre é importante lembrar que existem outros fatores que também causam danos ambientais e que afetam os peixes, como a poluição.

Poucas pessoas conseguem perceber que a ausência de saneamento básico, estações de tratamento de esgoto, ou mesmo a reciclagem de produtos podem afetar significativamente o estoque pesqueiro. Assim como qualquer atividade profissional, existem pessoas preocupadas com a manutenção, enquanto outras, apenas com o lucro imediato. Esta também é uma realidade do setor pesqueiro, mas também devemos compartilhar a culpa com os maus profissionais, pois quem determina o que será comercializado são os consumidores. Muitas pessoas desconhecem as legislações que visam ao gerenciamento dos recursos pesqueiros, assim como das espécies ameaçadas, ou mesmo das áreas restritas para a atividade pesqueira. O consumo sustentável é uma realidade que impõe aos comerciantes o que deve ou não ser comercializado e a sociedade é responsável também por denunciar os maus profissionais.

O pensamento sustentável tem crescido dentro do setor pesqueiro, pois o decréscimo populacional de várias espécies de peixes comerciais tem afetado diretamente o lucro do setor. Diferente do que muitas pessoas e até mesmo pesquisadores acreditam, iniciativas de pesquisas participativas envolvendo os pescadores de diferentes categorias de pesca (artesanal, industrial e esportiva) vêm colaborando com o conhecimento sobre os recursos pesqueiros. Estas parcerias são de extrema importância devido aos elevados custos de obtenção dos peixes para a pesquisa e pelo conhecimento empírico dos pescadores, que vivem diariamente em contato direto com os recursos naturais. Ainda são necessárias várias informações básicas sobre os peixes brasileiros, pois, sem elas, não é possível gerenciar adequadamente este recurso natural. Neste sentido, pescadores com a visão conservacionista que pretendem manter a atividade pesqueira a médio e longo prazo vêm colaborado com pesquisadores a fim de garantir a pesca sustentável. Embora muitas pessoas acreditem que a restrição da pesca é a única forma de gerenciar os recursos, várias outras formas são aplicadas e têm resultados significativamente importantes para a conservação, sem inviabilizar a atividade pesqueira.

No estado de São Paulo, uma destas iniciativas é o “Projeto Pró-Pesca: pescando o conhecimento”, desenvolvido desde o ano 2000 junto com pescadores e o setor pesqueiro em geral. O projeto já possibilitou a identificação de espécies desconhecidas pela ciência, assim como gerou dados básicos necessários para a avaliação do estado de conservação de diversas espécies de peixes pelos órgãos ambientais responsáveis, como o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (IBAMA). Inicialmente direcionado para o estado de São Paulo, atualmente o projeto, coordenado pelo Acervo Zoológico da Universidade Santa Cecília, está presente em todas as regiões da costa brasileira, demonstrando que existem muitos pescadores interessados na manutenção dos recursos pesqueiros e que a pesca sustentável não é uma utopia, e sim uma questão de pesquisa, educação e políticas públicas adequadas.

Outro pensamento que vem sendo divulgado e merece reflexão é a substituição de peixes capturados por cultivados. Muitas pessoas acreditam que a piscicultura é a salvação do estoque pesqueiro e a solução para suprir o mercado, porém ainda existem muitos desafios e questões a serem considerados em relação ao cultivo de peixes no Brasil. Hoje espécies como a tilápia e o panga estão disponíveis em quase todos os mercados de peixes, porém poucas pessoas sabem sobre a qualidade destes organismos ou mesmo sobre o impacto ambiental que causam. Infelizmente ainda existem poucas espécies nativas brasileiras cultivadas em escala comercial, no geral são utilizadas espécies exóticas que, quando fogem, degradam o ambiente, pois competem com as espécies regionais e geralmente não possuem predadores naturais. Outro aspecto que também precisa ser melhorado está relacionado ao controle de qualidade dos cultivados, principalmente no que se refere às substâncias utilizadas durante o cultivo, como hormônios, remédios, etc. Além disso, é importante lembrar que muitas áreas de cultivo, como as de camarões, são instaladas em regiões estuarinas, degradando a qualidade ambiental de um ambiente de elevada importância biológica, devido ser área de reprodução e crescimento de muitas espécies.

Assim, a piscicultura é uma importante fonte de pescado, mas no Brasil está longe de ser uma solução sustentável.

Em síntese
Estamos em um mundo com informações disponíveis rapidamente e assim devemos nos atualizar para obter a melhor parte deste conhecimento. Devemos ser membros ativos de uma sociedade que vise ao desenvolvimento sustentável e à erradicação de maus hábitos. A qualidade de vida faz parte dos objetivos do desenvolvimento sustentável, assim como a proteção dos recursos naturais. Desta forma, os esforços devem ser por parte de todos, pescadores, piscicultores, pesquisadores, empresários e consumidores, pois, enquanto os esforços forem direcionados apenas a uma parte da cadeia, os resultados não serão obtidos com efetividade. Para tomar decisões, necessitamos de informações seguras e confiáveis. Neste sentido, espero que o presente texto sirva para apresentar pontos que necessitam ser conhecidos e discutidos para melhorar nossa qualidade de vida em harmonia com o meio ambiente.

*Matheus M. Rotundo é licenciado e bacharel em Ciências Biológicas (Biologia Marinha), Mestre em Aquicultura e Pesca, Doutor em Planejamento e Uso de Recursos Naturais. É docente das disciplinas de Bioecologia dos Peixes e Biogeografia no curso de Ciências Biológicas da Universidade Santa Cecília, curador do Acervo Zoológico (AZUSC), coordenador do “Projeto Pró-Pesca: pescando o conhecimento” e do Núcleo de Análises Socioambientais (NASA). Também é docente permanente dos Programas de Pós-Graduação em Auditoria Ambiental: gestão e conservação (PPG-AUDB) e em Sustentabilidade de Ecossistemas Costeiros e Marinhos (PPG-ECOMAR).