Com o leme sem fio, a história da paracanoagem ganha uma nova página e pode significar a inclusão de paratletas na competição oceânica
Alunos de Engenharia Eletrônica e Engenharia Mecânica da Universidade Santa Cecília (Unisanta), em Santos (litoral paulista), desenvolveram um sistema que dispensa o uso dos pedais dos caiaques de alta performance (surfski) para que o leme seja movimentado através do acionamento com as mãos, por meio de um transmissor acoplado no remo. Desse modo, não se utilizam os pés para movimentar o leme, como acontece nos barcos oceânicos.
Fernando Fernandes de Pádua, de 35 anos, tetracampeão mundial de paracanoagem, fez questão de conhecer de perto o projeto e esteve na apresentação do Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) dos universitários e demonstração prática, que aconteceu na piscina da Unisanta, no último sábado (3).
“Ganhei vários títulos, mas sempre desejei competir no mar. Para quem está numa cadeira de rodas, o mar é a liberdade total. Poder utilizar esse sistema de leme é a maior representação de liberdade para mim. É um passo que talvez os alunos não tenham ideia da grandeza, pois estão desenvolvendo algo para pessoas do mundo inteiro. É um projeto inovador a nível mundial”, disse entusiasmado.
Fernandes tomou conhecimento da invenção por intermédio de Celso Filetti, tricampeão Brasileiro de Canoagem Havaiana, o qual deu a sugestão aos alunos e, inclusive, emprestou um caiaque para servir de protótipo do trabalho acadêmico.
Ao ver o resultado final, Filetti afirmou “eles não imaginam a dimensão desse projeto no âmbito da inclusão social. O próprio Fernando Fernandes já tentou fazer algo na Europa e em outros países e ninguém foi a fundo nisso. E agora, graças a Universidade Santa Cecília foi possível desenvolver esse sistema, que contribuirá não apenas na canoagem oceânica, mas na canoagem havaiana e em outros barcos. É um projeto precursor”.
O paracanoísta Daniel Bueno Dias, de 43 anos, que não tem nenhuma movimentação dos pés, foi convidado para testar o caiaque com o sistema de controle de leme pelas mãos e considerou o projeto “sensacional”.
“Vejo isso com muita motivação, pela inclusão da paracanoagem na canoagem oceânica em nível até mundial. Hoje, nessa modalidade, são utilizados barcos sem leme, e com menor velocidade”.
Dias explicou que no mar, o atleta sofre efeitos da correnteza, maré e vento, o que torna o controle do leme fundamental, principalmente num barco grande de alto rendimento.
“Isso tem que virar um produto mundial. Trata-se de um avanço do esporte, muito mais do que um trabalho de conclusão de curso”.
Sobre o projeto
O TCC foi desenvolvido pelos alunos Paulo Henrique Gomes Vellozo, Rodrigo Diegues Galhego e Walter Lobue dos Santos (Engenharia Eletrônica) e Gabriel Custódio, Edvan Silva, Paulo Vaz e Oliver Dammann (Engenharia Mecânica).
O princípio básico é o acionamento do leme (ou quilha) através de um servo motor, sem a necessidade dos pedais convencionais. O mecanismo funciona por sistema wi-fi por meio de comandos adaptados ao remo. Por essa razão, foi possível integrar os conhecimentos das duas áreas da engenharia.
Com esse sistema o caiaque se adapta para que pessoas com graves lesões, com deficiência ou que não possuam os membros inferiores, possam fazer as manobras de forma segura e simples.
Além de promover uma melhor qualidade de vida, sobretudo na área da saúde, proporcionando lazer, autoestima, interação com a natureza e condições para que se pratique esporte, a invenção é uma ferramenta que poderá ajudar os paratletas a competir no mar, enfatizou o supervisor de Canoagem Oceânica da Confederação Brasileira de Canoagem, Jefferson Sestaro, que também esteve na Unisanta.
De acordo com Sestaro, atualmente a canoagem oceânica não tem a modalidade paracanoagem incluída. “Esse projeto abre portas para o esporte no mundo e, quem sabe até, no futuro, nos jogos olímpicos, estarem usando esse sistema de leme”, enfatizou.
Rodrigo Galhego, formando da Engenharia Eletrônica, ficou satisfeito com o resultado, e disse ser gratificante usar a engenharia para a inclusão social.
“Conseguimos, com o projeto, criar a possibilidade de incluir nesse esporte as pessoas que não podem fazer uma remada com autonomia, devido à deficiência dos membros inferiores”.
Sobre a realização conjunta entre alunos de dois cursos distintos, Galhego comentou: “A integração com as duas engenharias foi fundamental. A ideia chegou inicialmente ao departamento de mecânica da Unisanta, mas como era preciso a solução eletrônica para poder fazer o comando, eles vieram buscar ajuda na engenharia eletrônica”, completou.
O projeto foi um dos vencedores do concurso Neorama 2016, de inovação e empreendedorismo, da Prefeitura de Santos e Fundação Parque Tecnológico.
Também apresentado no Congresso Brasileiro de Iniciação Científica (Cobric) da Unisanta, o trabalho teve orientação da professora Sabrina Martinez e co-orientação do professor Luís Fernando Pompeo Ferrara, coordenador do curso de Engenharia Eletrônica.
Fernando Fernandes – Tetracampeão mundial de paracanoagem
Fernandes trabalhava como modelo e seguia carreira internacional promissora, até que, em 2009, um acidente de carro o deixou paraplégico, mudando os seus planos. Foi na paracanoagem que encontrou um auxílio em sua reabilitação. Pouco tempo depois, conquistava seu primeiro título mundial.
Ele afirma que há quatro anos buscava algo que pudesse movimentar o leme com acionamento através das mãos. “Tentei várias formas, chegando a usar um sistema de freio de bicicleta, que era um sofrimento, pois tinha que ficar apertando por um longo tempo. Faltava algo com excelência, que suprisse essa necessidade. Quando você vai para o mar, se depara com condições extremas e quanto mais recursos para facilitar, melhor.”
“Quando o Filetti comentou sobre o projeto dos alunos da Unisanta, meus olhos brilharam. A maior frustração da minha vida como canoísta era essa. Ajudei a desenvolver a canoagem em velocidade. Quando comecei não tinha nenhum lesionado medular além de mim. Havia outros quatro atletas, mas eram amputados, que podem sentar em qualquer caiaque e remar. Mas para mim era uma dificuldade saber onde e de que forma sentar, como colocar a perna, se o caiaque virar, o que fazer. Então tive que percorrer todo esse caminho”, completou.